Desenvolver o espírito crítico e criativo do intérprete de textos legais, desenvolver a capacidade de análise dos estudos de casos concretos em que apareçam dúvidas a respeito do sentido do texto legal, em que a sua aplicação dá margem para uma discussão no momento do exercício profissional.
Escola da Exegese: “In claris non interpretatio”
Nos primeiros tempos, as leis que governavam os homens eram representadas pelas manifestações da natureza. A interpretação se realizava pelo método sensitivo. Algumas manifestações naturais, sentidas, sugeriam determinada conduta grupal ou individual. A lei que governava, e única que merecia atenção de seus intérpretes,era a natureza com suas forças desconhecidas.
Esse brocardo (Um brocardo é um princípio ou axioma jurídico, em maior parte escrito em latim, e que expressa concisamente um conceito ou regra maior) também é conhecido como “in claris non fit interpretativo” e “in claris cessat interpretatio”, com o significado de que, sendo a redação da lei clara, não se faz necessária a interpretação.
Somente cabe interpretação se houver obscuridade, ambiguidade na lei.
Num primeiro momento, o brocardo parece ser sensato. Se a lei é clara, é perfeitamente inteligível, para que interpretar?
Se alguém, diante de um texto claro e cristalino, interpreta esse texto, não seria com o intuito de desvirtuar o sentido das palavras da lei?
Por exemplo: a Constituição Federal prevê a imunidade para os livros:
Art. 150 — Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
[…]
VI — instituir impostos sobre:[…]
- d) livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão.
Livro goza, portanto, de imunidade tributária – o que é imune não pode ser tributado. A imunidade impede que alguma lei venha a instituir tributo sobre os livros. O texto constitucional é perfeitamente claro. De acordo com o brocardo “in claris cessat interpretatio”, ele não necessitaria ser interpretado.
O problema é que surgiu uma dúvida a respeito do álbum de figurinha da novela “Que rei sou eu”, da Rede Globo.
Esse álbum seria ou não seria um livro?
O passo seguinte é se perguntar: o que é um livro?
Qual o sentido da palavra “livro”, palavra que ocorre no texto constitucional?
Entende-se, normalmente, por “livro”, uma “reunião de folhas, encadernadas por uma lombada, e protegidas por uma capa”. Quando se toma um álbum de figurinha, será que se está diante de um livro?
Outro problema. Quando compro um “CD-Rom” que contém, por exemplo, parte da legislação brasileira, como aqueles que acompanham o “Vade mecum”? Parece não haver dúvida de que não estou diante de um livro, já que não há folha de papel, lombada, pois se trata de um disco de metal. Por outro lado, o conteúdo que existe no “CD-Rom” também se encontra em livros. É que o conteúdo daquilo que se entende por “livro” já foi encontrado em diversos suportes matérias: em pedra, couro de animais, papiro, papel – e, hoje, esse conteúdo é apresentado eletronicamente (CD-Rom, “e-book”, podendo ser lido em diferentes suportes).
Então o problema persiste: o sentido de livro é dado pelo seu suporte material (objeto feito de papel, encadernado etc.)? Ou pelo seu conteúdo (que pode ser registrado em diferentes suportes materiais)?
Todas essas questões mostram que se está a interpretar aquele dispositivo constitucional que, à primeira vista, parecia dispensar a interpretação.
A conclusão a que se chega é que o brocardo “in claris cessat interpretatio” não pode mais ser aceito;
- Em primeiro lugar, o texto legal somente é claro porque ele já foi interpretado e dessa interpretação não restou nenhuma dúvida quanto ao seu sentido.
- Em segundo lugar, a clareza é sempre relativa: o que pode ser claro para um, pode não ser para outro.
- Em terceiro lugar, sempre é possível encontrar casos concretos em que surgem dúvidas a respeito do sentido do texto legal, em que a sua aplicação dá margem para uma discussão, pois pelo menos dois sentidos são possíveis para aquele mesmo texto.
Referências
FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 5 ed. São Paulo: Atlas, 2008.
BOUCAULT, Carlos Eduardo de Abreu; RODRIGUEZ, José Rodrigo (Orgs.). Hermenêutica plural: possibilidades justifilosóficas em contextos imperfeitos. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação: uma contribuição ao estudo do direito. 3.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
______, BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. São Paulo: Saraiva, 2014.