Hermenêutica Jurídica: Ato de conhecimento e de vontade

Ato de conhecimento e de vontade

Podemos definir o conhecimento como a atividade mediante a qual tomamos consciência dos dados da experiência e procuramos compreendê-los ou explicá-los.

Por meio de um ato de conhecimento podemos explicar tanto o movimento da Terra ao redor do Sol quanto o conteúdo do que dispõem as normas jurídicas válidas do nosso Ordenamento Jurídico.

A Teoria Pura do Direito é uma das obras de Hans Kelsen, filósofo e jurista austríaco – naturalizado estadunidense – sendo a mais famosa destas. Escrito em 1934, o livro se insere nos cânones da escola juspositivista, representa uma tentativa de, por um lado, identificar uma norma como jurídica e, por outro, de organizar o sistema do direito.

Essas duas questões encontram-se relacionadas: num dos sentidos a que atribui ao conceito de validade, a norma N é jurídica porque pertence ao sistema jurídico – isto é, N fundamenta sua validade em outra norma jurídica, chamada de norma superior (a norma superior outorga competência a uma autoridade ou órgão competente para criar N). É o Princípio da Hierarquia das Normas, que dispõe as normas hierarquicamente, em escalões, e que permite identificar as normas jurídicas, a partirda Norma Fundamental.

Identificadas as normas jurídicas por esse aspecto formal de produção do direito, é possível ainda conhecer o seu material, ou seja, o conteúdo das suas disposições. As normas são expressas lingüisticamente; no caso do Brasil, são expressas na Língua Portuguesa – mesmo as chamadas normas consuetudinárias (costume) necessitam ser expressas lingüisticamente.

Como o sentido das palavras não é unívoco ou como duas normas implicando distintas conseqüências jurídicas podem ser ambas aplicáveis ao caso, ocorre o que Kelsen chama indeterminação não intencional do ato de aplicação do direito.

Portanto, o ato de conhecimento que utilizamos para explicar e descrever o direito (as normas jurídicas) apresenta como resultado a moldura: dado que as palavras possuem mais do que um sentido e o sentido delas depende do contexto em que são usadas, as pessoas que interpretam uma norma podem chegar a resultados diferentes.

E, como não existe um único sentido possível para as palavras da lei, como não existe uma única solução possível para os casos submetidos aos juízes, não podemos exigir que, mediante o ato de conhecimento, seja encontrado “sentido verdadeiro” da norma ou a “decisão correta” para o caso. Esse é o erro cometido pelas escolas positivistas do século XIX, como a Escola da Exegese e a Jurisprudência dos Conceitos.

Existe um limite para o conhecimento do direito – o que significa um limite para a própria Ciência do Direito. No caso da interpretação e da aplicação do direito, esse limite é a descrição da moldura, descrição das várias normas individuais em potencial dentro da moldura.

Se a função da Ciência do Direito é descrever o direito, a função do Aplicador do Direito é a de criar o direito, isto é, produzir a solução jurídica do caso concreto. O Aplicador do Direito (o juiz, os Tribunais, a Administração Pública) não se detém na pluralidade de sentidos possíveis da norma ou na pluralidade de soluções possíveis para o caso concreto, uma vez que ele precisa chegar à decisão: qual desses sentidos ou soluções possíveis será concretizado na norma individual por ele produzida?

O juiz, por exemplo, deve escolher uma dessas normas jurídicas individuais em potencial para formar a sua decisão, isto é, ele irá transformá-la na sentença que decidiu o caso julgado (na norma jurídica individual que, uma vez transitada em julgado, ingressou definitivamente no Ordenamento Jurídico).

Essa escolha, contudo, não se configura como ato de conhecimento (pelas razões expostas acima), mas como ato de vontade. Ao julgar, o juiz conjuga um ato de conhecimento com um ato de vontade.

Podemos definir vontade como um princípio da atividade: um ato é voluntário quando tem o seu princípio em uma decisão interior do agente. A vontade designa o movimento que nos leva a uma ação. No caso aqui discutido, a ação de escolher uma daquelas normas jurídicas individuais em potencial da moldura para formar a sua decisão.

Kelsen diferencia o ato de vontade do ato de conhecimento dizendo que o ato de vontade não é racionalmente controlável. Para entender isso, suponha dois juízes, J1 e J2 que julgam dois casos semelhantes, um ocorrido no Paraná o outro ocorrido em Alagoas. Eles entendem que é aplicável ao caso a norma N. A norma N apresenta indeterminação, de tal maneira que existem três sentidos possíveis a respeito do que dispõe N (moldura de N se compõe dos sentidos Ni, Nii e Niii).

J1 adota o sentido Nii e cria sua sentença S1; J2 adota o sentido Niii e cria a sua sentença S2 – S1, por exemplo, condena o réu ao pagamento de indenização ter agido com culpa; enquanto que S2 não condena o réu por entender que não agiu com culpa.

Para J1, a melhor interpretação de N é Nii. Para J2, a melhor interpretação de N é Niii. Para outro juiz, pode ser Ni. Cada um deles escolheu um dos sentidos possíveis, pois acreditava que aquele era o sentido que deveria ser empregado para se chegar à decisão. Nenhum deles pode racionalmente demonstrar para os demais que a sua escolha é a correta: Nii foi a escolha de J1, essa escolha vale para ele, mas não vale para os outros juízes que escolheram Ni e Niii. O mesmo se pode dizer da escolha de J2 e assim por diante.

Ora, o que é racionalmente controlável vale para todas as pessoas racionais. Por exemplo, “3 x 7 = 21” vale para qualquer pessoa e, se alguém discordar que o resultado é 21, ou ele não aprendeu aritmética ou ele não é uma pessoa racional (pode ser um louco).

Para Kelsen, a criação do direito é sempre um ato de poder. Ainda que se conjugue com um ato de conhecimento, a Aplicação do Direito é essencialmente um ato de vontade da autoridade ou órgão competente.

Referências

FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. São Paulo: Saraiva, 1996.

MAXIMILIANO, Carlos. Hemenêutica e Aplicação do Direito. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998.

PALMER, Richard E. Hermenêutica. Lisboa: Edições 70, 1986.

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2001.

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