A linguagem: ambiguidade e vagueza. Hermenêutica Jurídica

A linguagem: ambiguidade e vagueza

Ambiguity and vagueness in legal interpretation

Resumo
A vagueza e a ambiguidade são problemas-chave nas teorias da interpretação jurídica.
O artigo primeiramente delimita a vagueza e a ambiguidade e coloca essa questão
em relação com fenômenos similares como a generalidade das expressões jurídicas
(i). A vagueza se mostra um fenômeno multifacetado que pode ser sistematizado por
meio de três distinções: vagueza de individuação e classificação, vagueza de grau e
de combinação, e vaguezas semântica e pragmática. Para o Direito, a vagueza pragmática é de particular importância (ii). Quanto às origens e explicações da vagueza,
as diferentes abordagens são classificadas em explicações lógicas, ônticas, epistêmicas e semânticas, sendo que explicações epistêmicas e semânticas mostram a maior
proximidade com as teorias da interpretação jurídica (iii). A última seção argumenta
que a vagueza não é uma ameaça à interpretação jurídica e ao Estado de Direito propriamente compreendidos. Ela é cautelosa, apesar disso, em relação a alguns valores
sugeridos da vagueza. No entanto, o artigo enxerga um valor da vagueza em reduzir
os custos de decisão, que não podem ser completamente contemplados por outros
atributos semânticos de conceitos vagos como generalidade (iv).

Abstract
Vagueness and ambiguity are key problems in theories of legal interpretation. The
article first delimits vagueness and ambiguity and sets it into relation to related phenomena like the generality of legal expressions (i). Vagueness proves to be a multifaceted phenomenon which can be systematised along three distinctions: vagueness of individuation and classification, degree and combinatory vagueness, and semantic and pragmatic vagueness. For law pragmatic vagueness seems of specific import (ii). As for the origins and accounts of vagueness the different approaches are sorted into logic, ontic, epistemic and semantic accounts with epistemic and semantic accounts showing the closest relations to legal theories of interpretation (iii). The last section argues that vagueness is not a threat to legal interpretation and rule of law values properly understood. It is cautious, though, with regard to some suggested values of vagueness.
However, it sees a value of vagueness in reducing decision costs, which cannot be completely accommodated by other semantic features of vague concepts like generality (iv).
Keywords: philosophy of law, legal interpretation, ambiguity, vagueness.


O que é ambiguidade?
Resulta dos diferentes significados que pode ter um lexema, seja por polissemia seja por
homonímia. O contexto especifica o sentido a ser selecionado.

O que é vagueza?
Polissemia não deve ser confundida com flexibilidade de uso. A vagueza pode ser
observada, por exemplo, em os conceitos que dependem de propriedades variantes numa
escala contínua, verbos com movimentos ou instrumentos inespecificados etc.
Por exemplo, o que uma pessoa considera como “criança”, “adulto” ou “maduro” pode variar
de pessoa para pessoa, de contexto para contexto.
O contexto pode acrescentar informações que não estão especificadas no sentido.


Deve compreender e relaciona-se com os termos linguísticos da textura aberta de H.L.A. Hart que descreve a linguagem: ambiguidade e vagueza e também analisar as características ou propriedades que um objeto deve ter para ser designado pelo termo.

A linguagem: ambigüidade e vagueza

A linguagem é um sistema de signos. No caso das línguas, como a Língua Portuguesa, os signos são chamados de símbolos (as palavras), porque eles são convencionais. Dentre as palavras de uma linguagem, encontram-se:

a) os nomes próprios: que representam um objeto e somente aquele objeto:

  • Exemplo: São Paulo.

b) os termos gerais (ou de classe): referem-se a um conjunto de objetos que apresentam características semelhantes (p. ex., “cidade”).

  • O significado dos termos gerais apresenta duas dimensões:

a) conotação (ou intensão, com “s”) é o conjunto de características ou propriedades que um objeto deve ter para ser designado pelo termo. É o que se encontra nos dicionários, por exemplo, quando se procura pelo significado de um verbete.

b) denotação (ou extensão) é a sua referência, isto é, os objetos aos quais o termo se aplica.

  • No caso do termo “cidade”:

a) conotação (ou intensão): segundo o dicionário Houaiss, “aglomeração humana de certa importância, localizada numa área geográfica circunscrita e que tem numerosas casas, próximas entre si, destinadas à moradia e/ou a atividades culturais, mercantis, industriais, financeiras e a outras não relacionadas com a exploração direta do solo”.

b) denotação (ou extensão): São Paulo, Belo Horizonte, Bauru, Paris, Buenos Aires etc.

Outro exemplo: Se um estrangeiro perguntar o que é uma cadeira, é possível responder-lhe de duas maneiras:

a) dizendo: “cadeira é um objeto com pernas, assento e encosto usado para sentar” (intensão ou conotação); ou

b) apontando para a cadeira na qual o estrangeiro está sentado (extensão).

Na expressão “Os contratos são atos jurídicos” ocorrem, portanto, dois termos gerais: “contrato” e “ato jurídico”. Já na expressão “é proibida a entrada de veículos no parque” ocorrem os termos gerais “veículo” e ”parque”.

Algumas dificuldades no uso da linguagem dizem respeito àquelas duas dimensões. Essas dificuldades são chamadas de imprecisões semânticas:

a) ambigüidade: imprecisão semântica que se refere à conotação (intensão);

b) vagueza: imprecisão semântica que se refere à denotação (extensão).

  • Ambigüidade:

a) homonímia: um mesmo termo apresenta dois significados que não guardam relação entre si.

Por exemplo:  “manga” pode significar uma determinada peça do vestuário ou uma fruta. Se alguém simplesmente diz “a manga”, não se pode saber ao que ele se refere. Em boa parte dos casos, essa imprecisão se resolve pelo contexto em que o termo é usado: se, numa feira, alguém pergunta pelo preço da manga, é claro que ele se refere à fruta;

b) relacional: um mesmo termo apresenta dois significados que têm relação entre si.

No direito, um bom exemplo é o do termo “culpa”: é diferente falar de culpa em sentido amplo (o que engloba o dolo) e de culpa em sentido estrito (nas modalidades negligência, imprudência ou imperícia), mas os significados estão relacionados entre si. Ou o próprio termo “direito”, que pode significar direito objetivo (“o direito brasileiro não prevê pena de prisão perpétua”) ou direito subjetivo (“ele tem direito de votar”), ciência do direito (“o direito é uma disciplina tradicional dos nossos cursos superiores”) ou a qualidade do que é justo (“jogar papel no chão não é direito”);

c) ambigüidade sintática: uma determinada estrutura sintática gera uma dúvida.

Por exemplo: no enunciado “durante as avaliações, os alunos podem consultar apostilas e livros que não tenham anotações“, a proibição quanto ao material que contenha anotações se refere somente aos livros ou também às apostilas?

  • Vagueza:

A imprecisão semântica mais difícil de ser tratada é a vagueza. Nesse caso, o problema está em se saber se o objeto ao qual nos referimos é ou não designado por aquele termo. Há dois tipos de vagueza:

a) quando a propriedade que constitui o critério de aplicação do termo aparece de maneira gradual ou contínua nas coisas.

Por exemplo: o termo “careca”. Todos sabem o que é careca, todos sabem que o José Serra é careca e que a Dilma Rousseff não é careca, mas, em muitos casos, é difícil saber se uma determinada pessoa é ou não careca, quando ela ainda tem alguns fios de cabelo, mas as entradas são muito acentuadas.

Outro exemplo: não há dúvida de que alguém com 1,90m é uma pessoa alta; de que alguém com 1,60 não é uma pessoa alta.

  • Uma pessoa, contudo, com 1,70m ou 1,75m é alta?

E a resposta não será a mesma em duas localidades distintas, uma em que a média de altura das pessoas é de 1,75m; a outra, em que a média é de 1,60m.

b) quando os casos típicos de aplicação de um termo se estruturam a partir de um conjunto de propriedades, enquanto que, nos casos duvidosos de aplicação, essas propriedades se apresentam de estruturadas de maneira especial.

Por exemplo: um objeto com quatro pernas, assento, encosto e usado para sentar é designado como uma cadeira. E se o objeto tiver três pernas, assento, encosto e seja usado para sentar, pode ser uma cadeira?

  • Parece que sim. Um “puff”, no entanto, seria uma cadeira?

A vagueza representa uma grande dificuldade para o direito, pois ela não pode ser eliminada recorrendo ao contexto de uso do termo. Todo termo geral é potencialmente vago.

Exemplo: o termo “compra e venda” é vago. Vamos supor que um determinado bem custe, em média, R$ 2.000,00 no mercado. Se alguém comprou o bem por R$ 2.100,00 ou por R$ 1.850,00, realizou uma compra e venda. Podemos, contudo, falar de uma compra e venda se o preço pago foi de R$ 10,00? Não, no caso ocorreu uma doação simulada.

O mesmo se o preço pago foi de R$ 70.000,00, pois nesse caso também houve uma doação simulada, mas agora a doação foi de dinheiro.As certezas desaparecem quando começamos a analisar uma compra pelo preço de R$ 1.500,00. Ou de R$ 1.000,00.

  • Será uma compra e venda?

Aliás, é impossível determinar a partir de qual valor a o ato jurídico deixaria de ser uma compra e venda e passaria a ser uma doação simulada.Herbert Lionel Adolphus Hart (1907-1992) dá um exemplo muito simples dessas dificuldades. Uma singela placa no parque diz “é proibida a entrada de veículo”.O significado do termo “veículo” é dado pela sua intensão e extensão.Com relação à sua intensão, o dicionário Houaiss traz mais de uma intensão, dentre elas:

(i) “substância que facilita a aplicação ou uso de outra substância com ela misturada ou nela dissolvida”, e

(ii) “qualquer meio usado para transportar ou conduzir pessoas, animais ou coisas, de um lugar para outro”.Pode-se ver que “veículo” é um termo ambíguo. Como ele ocorre numa placa afixada no portão de um parque público, essa ambigüidade se desfaz. Tem-se, portanto:

a) intensão (conotação):qualquer meio usado para transportar ou conduzir pessoas, animais ou coisas, de um lugar para outro.

b) extensão (denotação): carro, ônibus, bicicleta, moto etc.

Primeiro problema: quais as características relevantes para algo ser considerado um veículo e não poder entrar no parque?

a) fazer barulho e incomodar os freqüentadoresdo parque (mas, o carrinho de bebê, abicicleta e o “skate” não fazem barulho);

b) ter rodas (uma asa delta não tem rodas; mesmo o avião tem rodas, mas ele não roda e sim voa);

c) ameaçar a integridade física dos freqüentadores (mas uma bicicleta e um “skate” não ameaçam a integridade física);

d) não possuir uma finalidade de lazer (um carro de passeio não possui finalidade de lazer e, portanto, deve ser proibido no parque; mas um carro de corrida pode ter essa finalidade, será que a entrada de um kart deveria, então, ser permitida?).

Se não há dificuldade em constatar que a proibição de entrar no parque se aplica aos carros de passeio, por outro lado, parece que a proibição não alcança carrinhos de bebê, bicicletas, ambulâncias, caminhões de lixo, ainda que todos eles possam ser caracterizados como veículos.

Para finalizar, essas imprecisões, especialmente a vagueza, não devem ser necessariamente entendidas como algo negativo, afinal são elas que permitem usar a linguagem formada por um número limitado de termos (ou palavras), como a nossa linguagem.

Se fôssemos seres dotados de uma inteligência infinita, poderíamos ter uma palavra para cada objeto distinto, para cada circunstância distinta (na sala de aula, há 70 carteiras; como nenhuma delas é exatamente igual à outra, teríamos 70 palavras para designá-las; numa universidade, 70.000 palavras para designar as 70.000 carteiras etc.).

Além disso, não precisamos criar palavras novas (ou regras novas) a cada nova situação que surge, pois a vagueza dos termos linguísticos permite utilizar as palavras já existentes para designar o novo.

Exemplo:  “e-book” é um “livro eletrônico”.

Referências

HART, Herbert Lionel Adolphus Hart. O Conceito de Direito. O conceito de direito. São Paulo: Martins Fontes. 2009.

FERRAZ JR. Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. São Paulo: Atlas. 2013.

PERELMAN, Chaïm. Tratado da argumentação: a nova retórica. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

RANGEL JÚNIOR, Hamilton. Manual de lógica jurídica aplicada. São Paulo: Atlas, 2009.

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010.

FRANÇA, Rubens Limongi. Hermenêutica jurídica. 9. ed. São Paulo: R. dos Tribunais, 2009.

CAMARGO, Ricardo Antônio Lucas. Interpretação jurídica e estereótipos. Porto Alegre: Editora Antonio Sergio Fabris, 2003.

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