Função da Ciência do Direito
Estabelecer as bases de uma verdadeira Ciência do Direito, uma ciência que estude o direito a partir do ângulo normativo.
Função da Ciência do Direito
O projeto desenvolvido por Hans Kelsen é o de estabelecer as bases de uma verdadeira Ciência do Direito, isto é, uma ciência que estude o direito a partir do ângulo normativo. Já se encontrava consolidada uma Sociologia do Direito, uma ciência que estuda o direito como um fato social. Mas a Sociologia do Direito não se confunde com o que se chama de Ciência do Direito, pois esta vê o direito enquanto norma, e não enquanto fato.
Até o momento em que publica a sua Teoria Pura do Direito, em 1934, ele acredita que falharam todas as tentativas de se construir uma Ciência do Direito que produza realmente conhecimento científico a respeito do direito, ou seja, que descreva objetivamente o seu objeto de estudo, como faz toda e qualquer ciência.
Ela não chegou de fato a se constituir porque os juristas se deixaram levar por temas que não diziam respeito ao objeto próprio dessa ciência.Em vez de se ater ao seu propósito enquanto cientistas do direito, os juristas passavam, por exemplo, a criticar o direito existente, propondo a sua alteração, ou, ainda, que não fosse levado em consideração pelos Tribunais no momento do julgamento de alguma ação, já que ofenderiam algum princípio moral ou protegeriam algum interesse social que não mereceria a proteção naquele caso.
Ao pretender estudar o direito, esses juristas promoviam uma grande confusão ao trazer para o conhecimento do direito elementos sociológicos, políticos, econômicos, culturais etc., bem como fatores valorativos ou ideológicos. Essa heterogeneidade de objetos impedia o avanço do conhecimento e a real constituição da Ciência do Direito.
A solução de Kelsen para evitar esse problema foi purificar a Ciência do Direito desses elementos que não são normativos (esses elementos devem ser estudados por outras ciências) e desses fatores valorativos e ideológicos (a tarefa da Ciência do Direito não é a de estipular o direito que deve ser, isto é, o direito que deverá ser criado, mas a de descrever o direito que existe, sendo irrelevante se o cientista está ou não de acordo com o conteúdo das disposições jurídicas, se o cientista avalia uma norma jurídica como justa ou como injusta).
O postulado metodológico fundamental adotado por Kelsen é o de se limitar a considerações jurídicas, levando em consideração apenas as normas jurídicas, o único objeto de estudo de uma ciência normativa do direito. Com isso, Kelsen pretendia garantir a autonomia dessa ciência normativa do direito, isto é, diferenciá-la das demais ciências, como a sociologia jurídica, e da filosofia do direito.
Nesse ponto, é preciso ter cuidado: Kelsen não escreveu a “Teoria do Direito Puro”, mas a Teoria Pura do Direito. Não é o direito que é puro, é a teoria que deve ser pura, para descrever o direito cientificamente.
Enquanto fenômeno social, o direito é criado a partir do jogo de forças políticas, de interesses econômicos, dos mais variados valores existentes na sociedade. Como bom positivista, Kelsen sabe que é a autoridade que faz o direito, não a razão. E a autoridade, por meio do direito, faz valer os seus valores, a sua visão política, privilegia este ou aquele interesse.
É a teoria (que tem a função de descrever o direito) que deve ser pura, ou seja, não se deixar contaminar pelos valores, pela ideologia, pelos interesses etc. Se isso acontecer, a visão que se terá direito será uma visão deformada, o que impedirá o conhecimento do direito.
Por exemplo: José é um constitucionalista (cientista do direito que estuda as normas constitucionais) e tem a crença de que o voto deva ser facultativo. Para ele, é um rematado absurdo obrigar as pessoas a votar; afinal, numa verdadeira democracia, segundo José, é o cidadão que deve decidir se vota ou não; além do que, pensa ele, a própria qualidade do voto será melhor, pois ele será conscientemente depositado na urna. Enquanto cidadão brasileiro, José pode lutar para que o voto deixe de ser obrigatório, escrever artigos e panfletos nesse sentido, criar um movimento pelas redes sociais, votar em deputados e senadores comprometidos com a sua causa etc. Enquanto constitucionalista, contudo, suas crenças políticas são absolutamente irrelevantes: ele deve descrever objetivamente o que dispõe a Constituição Federal é concluir que o voto é obrigatório, no Brasil, para aqueles que tenham de 18 a 70 anos.
O objeto da Ciência do Direito são as normas jurídicas. Kelsen define as normas como o sentido objetivo de um ato de vontade.
A Ciência do Direito estuda o direito, portanto, do ângulo normativo. Como se viu, a Sociologia do Direito também estuda o direito, mas como um fato social. Logo, não se pode estabelecer uma confusão entre elas.
A sociologia estuda, por exemplo, como os casais se estabelecem hoje em dia no Brasil. Analisa, por exemplo, a existência de relacionamentos amorosos paralelos. João é vendedor, solteiro, vive com Maria a vida inteira em São Paulo, e mantém outros dois relacionamentos também duradouros, com Isabel em Franca e com Amália em Bauru. Qual o tipo de relação social se estabelece entre todas essas pessoas? Qual a estrutura preponderante da família hoje em dia? Essas poderiam ser algumas questões a serem respondidas pela sociologia.
Já a Ciência do Direito se preocuparia com outras questões. Por meio das suas proposições normativas, descreve as normas que disciplinam a família. Por exemplo, qual a qualificação jurídica desses três relacionamentos de João? É juridicamente permitida a coexistência de três uniões estáveis paralelas? Ou a lei prevê a possibilidade de uma única união estável, qualificando juridicamente os outros dois relacionamentos como sociedades de fato?
Aproveitando esse paralelo com a Sociologia, uma importante distinção apresentada porKelsen é entre as Ciências Causais (como a Sociologia, a Física, a Química) e as Ciências Normativas, como a Ciência do Direito. As primeiras se organizam pelo Princípio da Causalidade. Essas ciências estabelecem relações de causa e efeito entre determinados fenômenos ou fatos: “se um metal for submetido ao calor, então o metal se dilatará” (o calor causa a dilatação dos metais). Eis a forma das suas proposições: “se A é, então B é”.
Já a Ciência do Direito se organiza pelo Princípio da Imputação. A forma da sua proposição é outra: “se A é, então B deve ser”. Por exemplo, “se alguém subtrai para si ou para outrem coisa alheia móvel, então deve ser condenado à pena de reclusão de um a quatro anos e multa”.
As conseqüências dessa distinção são importantes para se compreender a especificidade da Ciência do Direito:
a) a proposição que trata da dilatação dos metais é falsa se, uma vez submetido ao calor, o metal não se dilatar. Suponha que tenha sido descoberto um novo metal. Uma vez submetido ao calor, ele não se dilata. Aquela proposição deve ser abandonada pela Física, pois foi desmentida pelos fatos. Já no caso da proposição jurídica, o fato de não ter sido condenada a pessoa que subtraiu para si coisa alheia móvel não torna falsa a proposição. Trata-se de um juízo de dever ser, não de uma descrição de um fato acontecido ou de uma previsão do que acontecerá.
b) No caso das ciências causais, as relações de causa e efeitos formam longas cadeias: o que era o efeito de uma causa torna-se, agora, causa de outro efeito que, por sua vez, torna-se causa de outro efeito etc. Do ponto de vista da Sociologia Criminal, é possível estabelecer uma série causal para explicar o fato de pessoas de alto poder aquisitivo cometerem crimes, como os chamados “crimes de colarinho branco”. Suponha que um alto executivo de uma empresa cometa o crime de lavagem de dinheiro. Várias causas podem ser descobertas para explicar o seu comportamento: sua educação em uma sociedade individualista em que vigore o lema “aos amigos tudo, aos inimigos a lei”, as práticas de negócios em um determinado segmento econômico, a pressão pelos resultados econômicos sob pena de demissão, a falta de punição pelos órgãos controladores, a seletividade do Direito Penal em punir os crimes cometidos pelas pessoas de nível social inferior etc. Para a Ciência do Direito, essas causas são desconsideradas, pois se estabelece que, independentemente de uma causa social determinada, a pessoas que cometeu o ilícito deve ser condenada. Um recorte da realidade é feito e, desconsiderando-se aquela série causal, determina-se que uma sanção deve ser aplicada. Para o direito, o ato ilícito não é a causa da sanção aplicada. Trata-se de uma ligação de natureza diferente: a imputação. E a conseqüência do ilícito (a sanção) é imputada ao ilícito, mas não é produzida pelo ilícito como sendo a sua causa.
Referências
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. São Paulo: Saraiva, 1996.
MAXIMILIANO, Carlos. Hemenêutica e Aplicação do Direito. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998.
PALMER, Richard E. Hermenêutica. Lisboa: Edições 70, 1986.
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2001.