A figura do Legislador Racional. Hermenêutica pós-giro linguístico

Compreender que o movimento de codificação do direito, que se desenvolveu no século XIX, foi entendido como uma criação racional do direito: as normas são dispostas de maneira organizada dentro de um mesmo diploma legal e são criadas ao mesmo tempo, de maneira a escapar ao capricho das determinações pontuais e arbitrárias dos reis ou à lenta elaboração do direito costumeiro, de conteúdo confuso e muitas vezes irracional.

Legislador Racional.

Carlos Santiago Nino (1943-1993) foi um filósofo e jurista argentino. Para explicar a dogmática jurídica (a forma que a ciência do direito assumiu a partir do século XIX nos países da família romano-germânica), ele criou a figura do Legislador Racional.

O movimento de codificação do direito, que se desenvolveu no século XIX, foi entendido como uma criação racional do direito: as normas são dispostas de maneira organizada dentro de um mesmo diploma legal, as normas são criadas ao mesmo tempo, de maneira a escapar ao capricho das determinações pontuais e arbitrárias dos reis ou à lenta elaboração do direito costumeiro, de conteúdo confuso e muitas vezes irracional.

Já que o direito é criação racional, os juristas acabaram por conferir ao sistema jurídico e às normas que o compõem uma série de propriedades: precisão, sentido claro e único das suas disposições, completude (o direito propõe solução para todo e qualquer caso), coerência (as normas não se encontram em conflito dentro do sistema jurídico) etc.

A ciência do direito (ou dogmática jurídica), ao estudar e descrever o direito, acaba por efetuar uma reformulação das normas jurídicas, com o objetivo de aproximá-las daqueles ideais racionais.

É importante notar que se trata de uma atividade encoberta: os juristas afirmam que se limitam a descrever o direito (como se dissessem: “nós, juristas, devemos respeitar a lei, não cabe a nós criar nem mudar o sentido do direito, que é criado apenas pelo legislador“), mas, ao final, o que acabam por fazer é reconstruir o direito de modo a torná-lo preciso, coerente, completo etc… .

O direito, na realidade, apresenta conflitos de normas, lacunas, disposições permitem várias interpretações, diferentes sentidos. A dogmática jurídica, contudo, ao estudar o direito, reelabora o sentido das suas normas, de maneira que esses “defeitos” desapareçam.

Para conseguir reelaborar o direito, a dogmática jurídica cria uma ficção, a figura do Legislador Racional. Como ela pressupõe a racionalidade do Legislador, ao se deparar com duas normas que se encontram em conflito.

Exemplo: “entre N1 “é permitido o acesso à internet durante as aulas“ e N2 “é proibido o acesso à internet durante as avaliações”, a dogmática “descreve” o direito como coerente, isto é, elimina o conflito dizendo, no caso de uma avaliação, o acesso à internet é proibido, enquanto que, não se tratando de avaliação, o acesso é permitido.

  • Essas são as propriedades do Legislador Racional:

a) ele é único: apesar da existência de leis municipais, estaduais e federais, todo o ordenamento jurídico é fruto de uma única vontade;

b) ele tem permanência ao longo do tempo: ainda que os vereadores, deputados, senadores morram, o Legislador não morre;

c) é onisciente, ele conhece todos os elementos fáticos sobre os quais as normas jurídicas incidem; assim como todas as normas jurídicas do sistema jurídico, que regulam todos os casos possíveis;

d) é justo, sempre se atribui a ele a solução mais justa;

e) ele é coerente, já que a sua vontade não pode se contradizer;

f) ele é sempre preciso, pois, apesar das limitações da linguagem, o sentido da sua vontade, expressa por meio das normas, é claro e unívoco;

g) ele é finalista, ao criar as normas sempre tem alguma intenção;

h) é econômico, não usa palavras desnecessárias, nem as normas criadas são redundantes;

i) é operativo, pois todas as normas por ele criadas têm aplicabilidade.

Referências

FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 5 ed. São Paulo: Atlas, 2008.

BOUCAULT,  Carlos Eduardo de Abreu; RODRIGUEZ, José  Rodrigo (Orgs.). Hermenêutica plural: possibilidades justifilosóficas em contextos imperfeitos. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação: uma contribuição ao estudo do direito. 3.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

PERELMAN, Chaïm. Tratado da argumentação: a nova retórica. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

RANGEL JÚNIOR, Hamilton. Manual de lógica jurídica aplicada. São Paulo: Atlas, 2009.

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010.

nação. 5 ed. São Paulo: Atlas, 2008.

BOUCAULT,  Carlos Eduardo de Abreu; RODRIGUEZ, José  Rodrigo (Orgs.). Hermenêutica plural: possibilidades justifilosóficas em contextos imperfeitos. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação: uma contribuição ao estudo do direito. 3.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

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