A moldura da norma
Entender que para Hans Kelsen, o direito é um conjunto de normas que se dispõem em escalões no Ordenamento Jurídico.
Desde o escalão de maior nível hierárquico – onde se encontram as normas constitucionais – até o escalão mais inferior – onde se encontram, por exemplo, as sentenças judiciais, que são normas jurídicas individuais –, as normas encontram-se relacionadas entre si por meio do Princípio da Hierarquia das Normas (a norma superior outorga competência a um órgão que cria a norma inferior). As normas fundamentam sua validade nas normas superiores.
Quando se passa de um escalão superior a um inferior (como de uma lei a uma sentença), o direito sempre apresenta uma indeterminação.
Essa indeterminação pode ser:
- – intencional: origina-se da vontade do criador da norma de escalão superior – por exemplo, o legislador determinou que a pena para o crime de homicídio simples é de seis a vinte anos. Cabe ao juiz, aplicador da norma e criador da sentença (norma jurídica individual), determinar a quantidade da pena, dentro do intervalo de seis a vinte anos;
- – não intencional: como as normas são expressas linguisticamente, isto é, por meio de palavras, há uma indeterminação quanto ao seu sentido, pois as palavras possuem mais do que um sentido, e o sentido das palavras depende do contexto em que são usadas.
Dada uma norma geral (que se encontra, por exemplo, numa lei), ela não possui um único sentido. Em outras palavras, diferentes pessoas que a interpretam podem chegar a resultados diferentes.
O juiz que vai aplicar essa norma geral encontra-se diante de várias normas jurídicas individuais em potencial. Ele terá que, mediante um ato de vontade, escolher uma dessas normas jurídicas individuais em potencial para formar a sua decisão, isto é, ele irá transformá-la na sentença que decidiu o caso julgado (na norma jurídica individual que, uma vez transitada em julgado, ingressou definitivamente no Ordenamento Jurídico).
Por exemplo: dois juízes julgam casos semelhantes, a saber, se o “e-book” goza ou não de imunidade tributária.
Determina a Constituição Federal em seu artigo 150, VI, d:
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (…)
VI – instituir impostos sobre: (…)
d) livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão.
Juiz J1: Os livros são objetos de papel, encadernados por uma lombada, com capa. Se o sentido do termo lingüístico “livro” é esse, o chamado “e-book” não é livro, pois não é feito de papel. Portanto, o “e-book” não goza de imunidade tributária e as empresas que o fabricam ou o comercializam estão obrigadas a pagar os impostos decorrentes dessas atividades.
Juiz J2: O sentido do termo lingüístico “livro” não pode ser dado a partir do seu suporte material. Afinal de contas, o conteúdo do que chamamos de “livro” já foi encontrado em outros materiais além do papel: em papiro, em couro, em pedra …E, agora, esse conteúdo está armazenado eletronicamente nos “e-books”. “E-book”, portanto, é livro, é livro eletrônico, o que significa dizer que gozam de imunidade tributária e que as empresas que o fabricam ou o comercializam não estão obrigadas a pagar os impostos decorrentes dessas atividades.
É possível, ainda, que um terceiro juiz encontre um terceiro sentido para o termo “livro”, alargando os limites da moldura. Nem mesmo os limites da moldura são fixos!
Referências
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. São Paulo: Saraiva, 1996.
MAXIMILIANO, Carlos. Hemenêutica e Aplicação do Direito. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998.
PALMER, Richard E. Hermenêutica. Lisboa: Edições 70, 1986.
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2001.